terça-feira, 14 de outubro de 2014

A GUERREIRA VI

A GUERREIRA VI    continuação

Estava eu ali, na varanda, olhando o entardecer. Meus olhos perdidos no horizonte, os pensamentos voando. O vento frio soprava. Sempre trazia sobre as pernas uma grossa manta, revestida por pele de animais. Minha companheira de todo entardecer.

Me mantinha sentada, ereta, apoiando o punho esquerdo sobre a pequena cerca que  rodeava a varanda, feita sobre o estribo de madeira que a protegia. Era minha posição diária. Misto de meditação e de sobrevivência. Olhava para o céu como se visse uma paisagem surgir. Ficava horas ali, sentada, lembrando dos dias de outrora.

O tempo ia longe, mas nada era tão próximo quanto o dia daquele massacre. Me via ali, sozinha, sem o acalento dos familiares que tanto alegram o tempo da velhice. Teria feito as melhores escolhas na vida? Tanto priorizei a tribo, nossa comunidade, que muitos desafetos teci. Assumi uma postura revolucionária, ousada e forte, apesar de toda fragilidade e insegurança que me invadiam e até hoje invadem minha alma.

Tanto a se pensar... Já não tenho o vigor para as caminhadas entre os espaços íngremes que cercam nossa habitação. Já não detenho a clareza no olhar para perceber as variações do relevo. Não mais tenho a percepção sutil da profundidade, não percebo as sombras ou detalhes.Quase só enxergo o que se mostra a minha frente. Minha visão limitada também restringe um espaço de foco para que eu veja. Os dias se tornaram tão longos desde então...

Olhando as nuvens se tornando rosadas vi a minha frente uma jovem delicada, envolta numa aura sublime de felicidade. Tinha no colo um pequeno bebê que acabara de nascer. Quão esperançoso era seu sorriso! Olhava para o jovem que estava a sua frente e virtuosamente lhe entregou aquela pequena prenda, como se compartilhasse naquele gesto, um sentido de vida. Um faixo de luz rara que era compartilhado entre os dois.

O jovem rapaz, guerreiro também, acolheu desajeitadamente o bebe no colo. Olhava maravilhado para a criança e para a jovem a sua frente. Ela estava com os olhos marejados de lágrimas. Como se pareciam as duas! A criança espreguiçou e ele disse: Nessa pequena vida você está! Pequenina vida, grande força tem! A mesma força que existe em você! 

Um choro profundo saiu de meu peito. Já não mais  lembrava da nobreza daquele  momento. Tanta alegria significaria tanta tristeza depois... Seria assim a lógica da vida? Não sentir felicidade seria estado e garantia para não sentir e conviver com  a tristeza? Não ter é suficiente para não sentir o perder? Valeria o esforço de evitar a dor pela negação do amor?

Perguntas que não consigo ainda responder. Não agora...

sábado, 4 de janeiro de 2014

A GUERREIRA V

A GUERREIRA V

O platô era uma região onde o vento frio percorria nosso corpo como se fosse cortá-lo. Voltei ao tempo presente. Pensava sobre a situação do meu povo. As mulheres sofrendo as perdas mas mantendo as mesmas práticas. Emocionada como fiquei, foi fácil ao guerreiro perceber minha completa fragilidade, mas olhei-o nos olhos com a força dos que desejam viver. 

O guerreiro me entregou o caniço. Digo caniço, por ser um bastão muito fino. Não tinha  a mesma robustez dos bastões utilizados pelos guerreiros. Somente depois compreendi que antes de qualquer coisa, eu deveria preparar meu corpo para a defesa e o ataque. Mãos, pés e principalmente minha mente, deveriam ser usados como parte do maior instrumento de combate: meu próprio corpo. 

Tinha muitas perguntas mas não ousei fazê-las naquele momento. Dediquei-me ao treino. Cada palavra que era dita por meu mestre, era sorvida como se fosse a última gota de água de um manancial seco. Não poderia perder nada, deixar de aprender ou não absorver a riqueza de cada orientação seria uma lástima. Apesar de meu empenho, ao final, senti a exaustão de uma vida sob meus ombros... Não poderia desfalecer apesar do corpo contraído de dores e fadiga. 

Algumas mulheres ficaram por toda manhã espreitando ao longe o que acontecia, mas nenhuma ousou aproximar-se. Algumas crianças viram e até tentaram correr para o lugar onde eu estava, mas eram seguradas por suas mães e levadas para dentro das casas. Quando tivemos o fim do trabalho, desci para casa. Toquei minhas vestes que estavam ensopadas e sujas. Muitos foram os tombos e as quedas que tive. Estava suada apesar do frio local. Percebi mulheres que deixaram de olhar para mim e as mais velhas, algumas com o senho fechado, como se desaprovassem minha atitude, que para elas, desonrava o sacrifício de nossos valentes.

Dias se passaram em calma desde então. A parte da aldeia que foi queimada começou a ser reconstruída. O dia a dia voltou a ser como antes, apesar dos treinos continuarem intensos. Ao cair da tarde, num certo dia, vimos aquela nuvem escurecida, que pressagiava dores. Fumaça em volumosos rolos, corriam pelo céu em diversos pontos, vindos do sopé da colina. O alvoroço foi geral! Imediatamente o sino tocou e os homens se reuniram. Não sabia o que fazer. Corri para abrigar as crianças e ajuntar alimentos para que fôssemos para um pequeno abrigo entre as rochas, que passamos a ter, após as últimas perdas de guerreiros, com as flechas em profusão vindas do céu.

Para este combate, definiu-se que os nossos homens guerreiros, se colocariam em lugares planejados para defesa, sem que fossem percebidos, num espaço entre as aldeias debaixo e a nossa. Foram armados e confiantes. Iriam impedir que os inimigos chegassem até a aldeia e colocariam um fim em todo aquele período de aflição. Os homens haviam desenvolvidos algumas bolas de lama com espinhos encravados que serviriam de ataque para desestabilizar os pardos em seus cavalos e assim propiciariam que fosse decapitados. 

Contavam que atacariam nossos inimigos sem que esperassem, pois sempre éramos aqueles que descíamos e protegíamos nossas áreas. Da última vez, nos pegaram de surpresa, vindo silenciosamente até nossa aldeia e promovendo a chuva de flechas. Esperávamos que eles utilizassem a mesma estratégia, só que desta vez seriam atacados sem que esperassem, antes de chegarem à aldeia. 

Para nosso horror, tivemos inimigos mais ferozes que outrora. Estavam definidos a derrotarem os guerreiros de nossa aldeia. Os pardos dividiram-se. Sem que jamais esperássemos, parte deles subiu a encosta íngreme e sem nenhum uso comum para acesso à aldeia. Vieram margeando as quedas de água e escalaram a colina chegando à aldeia de surpresa, enquanto os demais, a maioria deles, veio pelos caminhos mais comuns. 

Nossos guerreiros conseguiram alcançar parte do plano feito. Atacaram os pardos sem que esperassem, o que lhes deu alguma vantagem. Porém, logo viram que a vantagem obtida não era suficiente, diante do grande número de mouros que bestialmente subiam a colina. Nosso guerreiros lutaram bravamente, fizeram os pardos recuarem, mas foram muitos os que ficaram naquela batalha.

Quando fomos nos abrigar entre as rochas, fiquei em alerta, sentindo que parte da responsabilidade de proteção também era minha, já que estava sendo treinada. Por estar em estado de alerta e por estar já numa área mais próxima a encosta, pude perceber a movimentação de alguns homens vindo para nos atacar. O que seria de nós? Enquanto tudo acontecia no campo, nos deparamos com o ataque de alguns inimigos que subiram a encosta íngreme e chegaram a nossa aldeia pelos fundos. Ali tínhamos apenas os mais jovens guerreiros, os anciãos, as mulheres e crianças. 

Corri até os anciãos e aguardei orientação. Junto com vários jovens guerreiros voltamos,  para trazer as mulheres e crianças novamente para um das casas da aldeia. Nos colocamos a postos, dispostos ao combate apesar de nos entreolharmos sem saber o que fazer ou o que estava acontecendo. O medo que me abateu foi enorme! 

Alguns dos meninos guerreiros encararam a situação como uma brincadeira. Não imaginavam que seria uma brincadeira de morte. Lançaram-se como se estivessem num treino e não fossem ser feridos. Vi a crueldade manifesta no sangue, que jorrava da barriga dos meninos, que nem sequer tiveram tempo para compreender o que acontecia. Não estavam brincando de lutar. Não eram heróis protegidos pelos deuses. Eram meninos. De carne e ossos, que se feriram sem compreender a verdade da vida. 






A GUERREIRA IV

A GUERREIRA IV


O guerreiro ancião, nosso sábio maior, com um tom de voz melancólico me disse:

-Menina. Quão leviana é sua proposição. Levante-se e saia.

Sem ouvir mais nada obedeci, e sob o olhar dos guerreiros que estavam ali, saí silenciosamente temendo ter ferido o espírito de meu pai que morrera em um combate entre tribos, quando ainda era pequena. Tão logo me distanciei dos olhares que estavam sobre mim, um aperto no peito me sufocou e caí em pranto profundo.

Me senti inadequada e cruel. Parecia que meu pedido tinha sido uma afronta, como uma acusação de fraqueza para nossos guerreiros, mas não era esta minha intensão! Só queria ajudar e temia pela nossa continuidade ali... Era perceptível que em mais um combate, com perdas significativas como estávamos tendo, certamente ficaríamos relegadas ao domínio dos invasores. Crianças e mulheres, todas seriam tomadas por escravas. Para que a manutenção do orgulho e da supremacia masculina em nossa aldeia, se não tivéssemos mais como nos mantermos unidos como povo? Será que eles não entendiam assim?

Em meio a meus pensamentos, regados pelas lágrimas que não cessavam, fiquei como uma menininha desamparada, com os joelhos ralados após uma queda. Encolhida, senti uma brisa suave vindo sobre mim. De meu interior surgiu uma voz forte. Ouvi como se saísse de meu coração a seguinte orientação:

- Segue em frente com seu intento. Verás a necessidade de estar a frente e proteger nosso povo da morte. Suas ações serão justificadas pelas suas intensões de proteção e sobrevivência. Sê forte. Persevera e ergue-te. Foste separada para ser parte de um novo tempo, onde não existirá separação de papéis por razões se submissão e superioridade. Os papéis serão assumidos pela busca do bem maior. O bem comum. 

Com minhas mãos procurei afastar as lágrimas dos meus olhos e me ergui. Deparei-me com um jovem guerreiro, que havia assumido o treinamento nos meninos, que foram chamados ao treino físico. Baixei meu olhar e me senti corar, ainda constrangida pelo que vivera a poucos instantes... Passei por ele que me segurou pelo braço e disse:

-Meu pai pediu que lhe dissesse para estar no platô das orquídeas amanhã, quando o sol nascer, para que seja testada.

Disse apenas assim. Um frio percorreu minha coluna. O que haveria de acontecer comigo? Tão abrupta foi a informação que não tive tempo de assimilar nada. O jovem seguiu seu caminho. Cheguei em casa, cuidei dos afazeres e me recolhi. Lembrei daquela inspiração que tive quando chorava e disse em voz alta para que eu mesma escutasse e acreditasse: Persevera e ergue-te. Dormi e tive uma noite tumultuada, com sonhos de choros e perdas... Eu era pequena, ouvi o soluço de minha mãe. Soube que meu pai, valente guerreiro havia ficado em uma luta para proteger-nos. Era assim que dizíamos: Ficou. Não pensávamos que um guerreiro haviam morrido. Eles ficavam. Seus espíritos permaneciam em continua proteção à aldeia, após terem seus corpos levados para o reino dos mortos.

Acordei bem cedo. Não sabia o que me esperava. Nada disse a minha mãe. Segui para o platô e lá encontrei o guerreiro pai do jovem que me deu o recado. Apenas me disse que iria me ensinar as artes de guerra, assim como eu pedi na reunião dos homens, apesar de ser uma mulher. Estava eu ali, vendo os homens guerreiros serem treinados ao longe. Olhavam para mim como se fosse uma aberração. Olhei para a aldeia. A força e a coragem me fortaleceram.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A GUERREIRA III

A GUERREIRA III

Os gritos me acordaram com o coração disparado. Parecia que nem conseguiria respirar tão grande era o meu aperto no peito. Saí correndo pela varanda e vi que algumas das casas estavam em chamas. Todos se mobilizaram e corriam para apagar o fogo, mas ele propagou rápido.

Um terço de toda a aldeia foi destruída. Tivemos feridos e dois mortos, que ficaram presos entre os escombros, um deles tentando salvar uma família. Muito triste o acontecido e ao mesmo tempo um grande ataque no que se referia ao sentimento de superioridade e segurança que tínhamos. A varanda onde acontecia a reunião dos homens foi atingida e destruída. Mais um baque. Mais um choque que trouxe grande fragilidade e que atingiu potencialmente o emocional do povo.

O dia amanheceu e o silêncio predominava. Ia de um lado para o outro tentando atender as necessidades que surgiam. Aquele ataque não poderia passar despercebido pela menor criança ou pela pessoa mais idosa! Era visível a destruição. Ficou perceptível nossa fragilidade! Não havia mais o sentimento de que havia uma aura de proteção que nos rodeava. A vigilância passou a ser contínua e passamos a agir amedrontados e numa situação de reatividade, de defesa. O controle não era mais nosso por direito. Passamos a agir como perseguidos.

Os homens se revezavam em vigilância contínua. As mulheres continuaram com a sua rotina e despertava-me para a necessidade de nos prepararmos melhor, caso houvesse a necessidade de nós mulheres agirmos em algum combate. Procurei algumas das senhoras de dias e procurei me aconselhar e expor meu pensamento...

Elas foram enfáticas ao dizerem que seria uma afronta para os homens guerreiros. Explicaram-me que a natureza fez a vida assim. Ao homem cabia a proteção e a mulher cabia o suporte, o aconchego o agregar que dá aos homens o poderio.  Conversei com elas e disse que a natureza também tem comportamentos diferentes diante de crises. Os rios transbordam, os barrancos caem, os animais fogem e até mesmo aqueles que são rivais podem habitar um mesmo ambiente em situações de aflição... Não fui ouvida.

Na reunião da tarde, ousei me aproximar de cabeça baixa, e sob o olhar acusador dos homens, principalmente os mais velhos, pedi que me escutassem. Como estavam todos reunidos embaixo de uma árvore frondosa, lugar atípico, já que a varanda de reuniões fora destruída, não souberam bem como reagir comigo e minha intromissão. Disse a eles que éramos muitas mulheres na aldeia e que poderíamos ser treinadas para o combate. 

Antes de apresentar qualquer argumentação, o ancião responsável, veio à minha frente. Imediatamente me ajoelhei tão grande foi o sentimento de estar acuada e inadequada em minha postura. Ele, com sua veste vermelha traspassada sob um ombro que recaia sob uma túnica branca, me olhou profundamente em silencio por longo tempo. Os murmúrios que ouvi logo que apresentei minha ideia cessaram. Ele com as mãos entrelaçadas em suas costas, com o cenho fechado, sobrancelha ligada à sobrancelha, inclinou a cabeça e continuou a me fitar como se quisesse resgatar meu olhar que era fixo ao chão. Levantei o rosto muito receosa e meu  olhar atraído pelo olhos dele, me fizeram sentir uma faísca intensa de ira e rancor que não imaginei que despertaria.

domingo, 15 de dezembro de 2013

A História do Menino V


A História do Menino V




Fernanda Machado Freitas


A senhora começou a me contar que as pessoas possuem muitas vivências e assim como ela, eu também tive outras vidas antes de nascer como Augusto, o Negrinho. Falou sobre termos tido muitos nomes, vivido em locais diferentes e ter tido muitas convivências. 


Ela começou a contar a historia de um jovem de cultura significativa, que amou muito uma moça que trabalhava cuidando de livros. Disse-me que a jovem era uma bibliotecária, numa cidade do norte europeu. Não entendi bem o que era norte europeu, mas alguma coisa estava diferente. Cada vez que a senhora falava, parecia que as imagens se formavam em minha cabeça e eu podia ver a terra de onde a jovem era. 

Neste momento, vi um rapaz caminhando de braços dados com a bibliotecária que era uma moça bonita e percebi que ele sentia muito amor por ela. Apesar do belo sentimento de amor que existia entre eles, o rapaz era apegado a posses, a vaidades e desejava muito ser parte de uma elite social. O grande afeto, que ele nutria pela jovem bibliotecária, não o impediu, porém, de se envolver com outra jovem que conheceu.


Uma jovem rica, de família tradicional, tinha atributos suficiente para fazer com que ele não hesitasse em deixar para trás toda felicidade e amor, que poderia viver com a jovem bibliotecária. Escolheu preencher seu coração com vaidades. Casou-se com a jovem rica sem pensar na dor e sofrimento, que a menina trabalhadora e esforçada teria. Não foi bom esposo. Não foi bom pai. Pensava apenas no que ganharia materialmente. 

Fiquei surpreso nesta hora. Vi nos olhos da jovem bibliotecária o sofrimento com a perda do amado e o mais surpreendente, vi neles o mesmo olhar da moça da fazenda, a mãe do menininho que morreu! Eram as duas, na essência a mesma mulher! Nada mais compreendi! A senhora pegando em minha mão, disse para ter calma, pois tudo me chegaria ao pensamento com mais exatidão, pouco a pouco. Disse ainda que nada é por acaso e que todas as historias se conectam.


Despediu-se e fiquei ali, acordado, pensando. Queria entender a razão de ver a mãe do menininho ali, como a jovem bibliotecária, com outras roupas e em outro lugar... Aquela mesma moça, que sempre teve um olhar carinhoso quando olhava para mim na cerca, que apesar de ter perdido o filho, rezava e pedia para eu estar junto do filho dela, sendo cuidado por Deus. Não encontrava respostas. 


Pensei tanto, que a exaustão me dominou e dormi novamente.
Quando estava dormindo, meu sono foi tumultuado. Via o rapaz branco, que trouxe tanto sofrimento para a jovem sonhadora e trabalhadora. No sonho vi que a jovem havia se casado com um homem bom, mas nunca esqueceu o amor que sentira pelo rapaz ganancioso. 

O marido dela, trabalhava guardando dinheiros e pertences de pessoas abastadas. Ela foi feliz ao seu lado. O amou de um modo diferente, mais amigo e paternal e sempre foi grata a Deus por ter lhe dado a companhia de um homem bom, excelente pai e que a amava verdadeiramente! Teve três filhos homens e honrou seu casamento.

Na mesma hora, eu já não estava mais ali, me via na beirada de um grande lago, agachado, vendo um homem suicidando. O homem sofria desesperadamente pela perda da mulher amada que o abandonou. Queria se matar para não ter que viver uma vida sem a amada e também para castigá-la. Ele tinha um amor enlouquecedor pela mulher que o abandonou. Sem forças para viver sem sua companhia e seu amor, cortou os pulsos com uma faca, cuja navalha estava especialmente afiada para facilitar seu intento.


Acordei com o peito apertado. Uma hora eu era de um jeito, em outra tinha outro corpo e via aquelas coisas acontecendo... O que me chamou atenção era a presença, sempre marcante, da mãe do menininho que caiu no buraco e morreu. Ela estava lá, hora como a jovem bibliotecária, hora como a mulher que abandonou o homem suicida... Lá estava ela. Lá eu estava, vendo tudo, mas ainda sem compreender. 

Senti vontade de me levantar. Afastei o lençol para o lado, vi minhas pernas e pés sem faixas. Abri um grande sorriso. Estiquei as pernas para fora da cama e me ergui. Percebi que era um homem adulto. Branco, média estatura, magro, pés compridos e finos. Usava uma roupa parecendo um avental que cobria minhas costas e minha frente até o meio da canela. 

Percebi que estava ligado a um cano fininho transparente, com um remédio que caia em minha veia. Uma agulha fininha estava fincada em meu braço. Tentei movimentar e ir até uma janela que estava próxima. Era possível arrastar o remédio que ficava preso sobre uma haste.

Cheguei à janela e vi um cenário tão bonito! Tive vontade de ir lá fora. Tinha tanta flor hortênsia na beirada dos caminhos... Precisava ir até lá! Nesta hora, um homem jovem chegou perto de mim e disse, de forma branda, que não poderia sair ainda. Precisava me recuperar, me fortalecer. 

Segurou o meu cotovelo esquerdo e me conduziu para a cama. Fiquei um pouco nervoso. Por que não me permitiam ir lá fora? Eu era prisioneiro? O que eles fizeram comigo? Não era mais o negrinho, tinha sonhos estranhos e agora esta! Não poderia sair... Alguma coisa estava muito errada! Fiquei zangado e quis brigar como o homem, mas na mesma hora, cai.

Fui para o chão como se fosse uma folha caindo de uma árvore. Não entendi o que aconteceu e tentei me erguer. Imediatamente percebi que minhas pernas sangravam e sangravam muito! Fui socorrido por mais outros dois homens vestidos de branco que me colocaram sobre a cama novamente. Deram-me água e injetaram outro remédio no líquido que caia em meu sangue. Dormi.

Acordei um tempo depois e estava mais recuperado. Tive permissão para sair e caminhar pelo jardim. Tive muito medo de me dirigir às outras pessoas de lá, mas aos poucos fui me acostumando a esta nova realidade. Ao novo corpo, a nova forma de ser, a calma daquele lugar. Passei a estudar, aprendi a escrever, tive acesso a acontecimentos passados e muita coisa se esclareceu para mim. Me vi por longo tempo, depois que descobri que o menino havia caído no buraco e morrido, procurando-o e ao encontrá-lo eu  seguia, sempre tentando ajudar, para compensar todo o mal que acontecera.  

Foram muitas histórias diferentes, o menino vivendo em outras realidades, mas algo me trazia para perto dele, sempre para perto dele e ali permanecia, invisível mas presente, tentado ajudá-lo. Vida após vida o menino manifestava algum problema nas pernas e eu tentava diminuir toda angústia e trauma que ele tivesse. 

Um dia em meus estudos, pude ver na tela de visões retrospectivas, o despertar do menino no buraco.

No fundo do buraco estava ele ali. Acordou depois de um tempo e percebeu que estava machucado. Não conseguia me mexer. O que está acontecendo? Onde estou? Tudo parece um sonho! Não consigo sentir minhas pernas, mas ao mesmo tempo sento uma dor enorme! De onde estou, não vejo minha casa da fazenda. Minhas mãos estão escurecidas pela terra, eu estou tão sujo, minha roupa azul está cheia de farelos de terra e mato.

Aquele moleque me empurrou sem que eu visse? Quero mamãe! Está tudo ficando escuro... Quero me levantar, mas estou imóvel e preso aqui. Era tamanho o meu esforço que voltei a dormir de exaustão, de dor, de fraqueza... Que sede eu sinto! Cansaço. Apenas cansaço...

Parece que se passaram dias. Acordei com o olho pesado, como o de quem dorme por muito tempo. Daquele jeito que sinto depois de um resfriado forte. O que estou fazendo aqui? Levantei e tentei sair daquele buraco, mas ele era fundo. Não conseguia. Tentei muito e nada. Sentei com as costas escoradas na parede de terra. Agachado no chão, com as mãos segurando o rosto. Vi pelo clarão do sol que um menino dormia à minha frente. Não queria ir até ele. Na verdade queria dar as costas e tentar sair dali. Quanto esforço e nada. Dormi novamente.

Acordei e me levantei, aliás, tentei me levantar novamente. Percebi que meu tronco e cabeça se ergueram, mas as pernas pareciam coladas ao chão. Nessa hora vi que eu estava ligado ao corpo daquele menininho que dormia no buraco. O menininho era eu. Como num clarão, tudo veio à minha mente: Eu havia morrido.

Estranhamente me senti mais velho. Não parecia que eu era uma criança de 4 ou 5 anos. Saí do buraco com facilidade, mas estava muito confuso. Me assentei logo por perto. Não entendia os fatos, mas sabia que o negrinho me machucou e me deixou morrer ali.

Meus pais não me procuraram. Ninguém fez nada por mim! Comecei a chorar. Vi que várias borboletas e flores começaram a voar ao meu redor. Fui pego pelas mãos. Eram dois homens anjos que me levaram dali. Me levaram para um lugar e disseram que minhas pernas seriam tratadas. Só um pensamento permanecia em minha mente: o que aconteceu? O que eu fiz para aquele menino ter sido tão cruel comigo? Só pode ter sido ele que me fez tão mal.

Deram-me uma água com cheiro de flores para beber. Bebi e dormi. Uma certeza eu tinha, mesmo que sem uma explicação, sabia que algum dia reencontraria o negrinho e ele teria que me contar o que aconteceu e por qual razão me fez tão mal! Cansaço... Exaustão... Sono... Lembranças.

Acordei depois de um tempo numa cama muito aconchegante e me sentindo mais forte. Tinha sempre visitas que conversavam comigo e me mostravam o quanto há de bom na vida. Descobri que teria nova chance de viver na Terra. Assim, vivi e morri, como dizem os homens por diversas vezes e sempre sentia no coração que haviam me feito mal e precisava descobrir a razão. 

Nesta última vida recebida como dádiva para meu desenvolvimento, era um leitor muito desejoso de viajar pelas letras dos livros, sejam eles físicos ou virtuais. A leitura me completava um vazio que não sabia explicar também. Havia em mim uma sensação de sempre estar na companhia dos personagens das histórias que lia. Dormia e sonhava com as realidades das histórias que lia e isso era muito bom! Havia começado a ler sobre a história de um menino escravo, que numa brincadeira inocente viu o filho dos senhores de sua fazenda falecer e recebeu a culpa por esta morte. Em virtude disso, paralisou seu processo evolutivo e ficou preso entre as eras tentando por esforço próprio, compensar o acontecido.  Numa noite, quando lia esta história, tive um sonho muito real. 

Sonhei que o menino aparecia para mim e disse: inspirei a escrita deste livro que lê para que de alguma forma fosse dado a você a condição de clarear seus pensamentos e perceberes que não tive culpa na ocasião de sua morte naquele buraco no terreno da fazenda. Quando esta conversa iniciou vi uma cena como se eu estivesse de fora. Uma senhora conversava com um menino negro, que tinha os pés mirrados e lhe dizia: já é hora de você deixar que o menino da fazenda viva a vida dele. Não é pela sua presença sempre ao redor dele que as coisas serão modificadas no passado. O que podemos fazer para que tudo se resolva e você consiga se libertar da culpa e seguir seu processo evolutivo? O menino então respondeu para a senhora: gostaria de trazer à memória de alguém todas as circunstâncias de minha história, intuir para que esta pessoa escreva sobre ela e assim, chegará ao conhecimento do menino da fazenda os fatos reais. 


Continua........................




A História do Menino IV


A História do Menino IV

Fernanda Machado Freitas 12/12/2013

Acordei e aquela música, que nós crianças cantávamos ao redor da cabana, ecoava na minha cabeça:


Fui cuidado, fui levado, tanto cisma quão melado.
Fui detido reprimido, tanto forte cão minguado.
Fui remido, destemido, tenho forte meu legado.
Tanta terra, tanta gente, no sol forte água quente.
Fui pro mundo, pé descalço, no canavial inchaço.
Pés no chão, sol na tez, braço forte pro freguês.

A gente cantava brincando de roda, passando os dedos pelo chão e rodando em passos harmônicos... Eu como sempre dava minhas gargalhadas. Apesar de não ter aberto os olhos ainda, aquela música cantava dentro de mim. Demorei a despertar completamente, mas quando acordei, vi que estava deitado numa daquelas coisas brancas que vi na casa da fazenda. Era fofo e macio. Limpo e fresco. Diferente do chão da cabana. 

Olhei ao meu redor e vi que estava sozinho, num lugar de parede como a casa. Era de cor azul. Do meu lado tinha uma mesinha e um jarro de água transparente, com o que viria a saber, que era um copo. Engraçado... Só conhecia as cuias de água e os jarros de barro. Aquilo parecia com as águas do riacho prendendo as próprias águas do riacho! Era tão bonito! Esbocei um sorriso e nesta hora entrou ali uma senhora.




Por mais que estivesse me sentindo vivo, eu me sentia fraco. Não senti nem vontade de levantar e sentar. A senhora veio e pegou em minha mão com um sorriso no rosto. Ela me perguntou se eu estava bem. Perguntei a ela se poderia beber água. Eu queria ver como ela derramaria aquela água para me dar.


Olhei a água caindo naquele copo transparente e quando ela o colocou em minha mão, eu o segurei com as duas e fiquei olhando dentro dele, vendo através da água o meu colo que estava coberto por um pano também branco. Achei tão interessante aquilo... Saboreei a água. Sorvi cada gotinha como se fosse algo precioso demais. Como era boa aquela água!

Percebi que tinha até me esquecido da senhora que estava ali ao meu lado. Abaixei a cabeça, me senti envergonhado e agradeci pela água gostosa. Ela, com aquela mesma forma atenciosa, disse que eu não precisava sentir culpa ou envergonha. Perguntei onde estava e ela disse que eu estava entre amigos. 

Achei estranho, já que nunca tive muitos amigos e nenhum deles de fora da cabana. A senhora, como se tivesse lido meus pensamentos, me disse que amigos são aqueles que cuidam de nós e nos querem bem, mesmo que não os vejamos com freqüência. Disse-me também que amigos são aqueles com quem nem convivemos ainda, mas que são capazes de nos aceitar e amar.

Aquelas palavras eram boas, mas eu não conseguia entender bem sobre elas. Tentei me mover e aí percebi que estava como que pregado à cama. Da cintura para baixo nem mesmo sentia o meu corpo. Ela colocou uma mão perto do meu ombro direito, já que ela estava sentada do lado direito de onde estava deitado e disse para eu ter paciência, pois estava sendo tratado e que se ajudasse em meu tratamento, logo estaria andando.




Vi que ela sabia da minha historia e queria reforçar com ela, o quanto fui vítima de um pai enraivecido e de um espírito ruim, que ficou assoprando no ouvido de um pai que estava amargurado pela perda de seu filhinho, que se vingasse de mim! Nesta hora ela passou a mão em minha testa e me disse: 


-Augusto. Não há mais tempo para você sentir pena de você mesmo! Deixe ir os sentimentos que o mantém no mesmo estado adoentado e de dores. Busque sentimentos de fé e tolerância com aqueles que o fizeram sofrer... Ela pousou nesta hora as duas mãos sobre minha fronte e me senti calmo, fui me acomodando novamente e voltei a dormir.

Acordei mais sereno e com mais vigor. A mesma senhora estava ali como se esperasse meu despertamento. Pegou em minhas mãos e disse: E aí, Augusto? Como você está hoje? Disse que me sentia bem. Tentei me mexer e percebi que já sentia minhas pernas. Não sei dizer se sentia minhas pernas mesmo... A sensação era de ter algo abaixo do meu umbigo, pois fiz força para me assentar e senti o peso do restante do meu corpo. 

Quis levantar o pano e a senhora me perguntou se era o que realmente eu queria fazer. Eu disse que sim e me deparei com algo ruim. Minhas pernas estavam enfaixadas. Mas também percebi algo que me fez muito feliz: Tinha faixas nos meus pés, o que significava que meus pés não estavam esmagados... Abri um grande sorriso e nesta mesma hora, olhei e percebi que eu não era um negro. Minha barriga tinha pele branca. Assustei-me demais! A senhora me viu todo confuso e me disse: Não se preocupe Augusto. Seu corpo na terra não é sua morada eterna. 

Não entendi nada. A aflição e a angustia vieram novamente. Me senti muito fraco! Será que eu estava ficando meio maluco? Será que eu estava sonhando? Eu sempre fui o Negrinho... Como pode ser isto de ver minha barriga, meus braços, tudo branco? E meu rosto? Estava negro? Nesta hora, a senhora deu uma sonora gargalhada. Ela realmente escutava meus pensamentos... Virou-se e de uma gavetinha que ficava na mesa onde a água estava, tirou uma coisa redonda com um cabo. Colocou na frente do meu rosto e aí eu me vi. Branco. Branco. Branco. Branco mesmo!

Apesar de saber que aquele não era eu, ao olhar em meus olhos eu sabia que era eu mesmo! Confuso, não é? A partir de então, a senhora começou a me explicar muitas coisas. Explicava até o nome da cama, do copo, do quarto... Me explicou também sobre o Augusto desencarnado...